Opinião: O discurso à beira do abismo



 Alexandre Nicoletti Hedlund*

O discurso de Bolsonaro na Cúpula de Líderes sobre o Clima causou duplo espanto. O primeiro pelo tom ameno, cheio de promessas otimistas com o futuro muito distante e a tentativa de reconciliação com o anfitrião (Joe Biden), que sequer acompanhou seu discurso. O segundo foi proporcionado pelo conteúdo, igualmente distante da realidade da política ambiental promovida pela administração brasileira. 

O evento foi importante para Biden reafirmar ao mundo e aos seus compatriotas os compromissos de campanha sobre a urgência da preservação ambiental, além da retomada do protagonismo norte americano na agenda de governança global em assuntos climáticos, reconstruindo pontes destruídas pelo governo Trump, que retirou os EUA do Acordo de Paris sobre as mudanças climáticas e da Organização Mundial da Saúde (OMS).

O discurso de Bolsonaro evidenciou o abismo que separa suas promessas discursivas das políticas públicas ambientais realizadas por seu governo. Entre outros pontos, destacou que “o Brasil está na vanguarda do enfrentamento ao aquecimento global”, o que não condiz com a realidade, uma vez que diversos países (Suécia e Suriname, entre outros) possuem ações mais concretas de redução das emissões de gases.

Ainda que o Brasil seja “o detentor da maior biodiversidade do planeta”, a aceleração do desmatamento ilegal, a expropriação de terras indígenas e a falta de fiscalização ambiental colocam em sério e imediato risco os biomas brasileiros, somando-se aos problemas decorrentes da queima de combustíveis fósseis. Por isso a necessidade de ampla discussão sobre a diminuição de emissões de gases do efeito estufa, as quais têm se acelerado no Brasil, nos últimos dois anos, revertendo a tendência dos anos anteriores.

Cabe lembrar que cerca de 69% de todas as emissões de gases do efeito estufa no Brasil estão relacionadas à revolução verde, embora não haja nada de novo no crescente consumo de pesticidas e nas queimadas destinadas às atividades agropecuárias. Além da erosão e desertificação de regiões inteiras, há um enfraquecimento do fomento a pequenos agricultores e sistemas agroflorestais. Enquanto as monoculturas comemoram recordes, cresce a fome e as vulnerabilidades de comunidades inteiras.

Se o bioma amazônico é motivo de orgulho, como permitir o silêncio diante da ampliação das áreas degradadas pela exploração madeireira ou pelas queimadas que apresentaram aumento de 15,6% entre 2019 e 2020? O cuidado com a água doce também deixa a desejar, indo literalmente pelo ralo com quase metade do esgoto sem tratamento adequado.

Se os atos valem mais que mil palavras, o Brasil de hoje regride décadas na proteção ambiental ao reduzir a fiscalização e o combate à ações ilegais, mas vai além ao regredir juridicamente e permitir que essas mudanças legais e administrativas “afrouxem” a regulação e fiscalização futura, como uma porteira sempre aberta que deixa a boiada passar.

Cabe lembrar que a omissão de um governo é mais grave e também pode se constituir como política pública, pois, ao operar longe dos holofotes, suas consequências tendem a ser mais graves e duradouras. Talvez por isso, até mesmo a promessa de neutralização das emissões até 2050 não reverberou positivamente, reforçando o descrédito na comunidade internacional, além dos cortes orçamentários do dia seguinte, que deixam mais dúvidas sobre a efetividade das promessas.

De um lado do abismo da crise ambiental está o discurso abstrato, falacioso e pouco preciso. Do outro lado, os fatos e a realidade, manifestada por diferentes segmentos da sociedade civil brasileira, servidores técnicos do IBAMA, agentes políticos de diferentes matizes, assim como líderes indígenas que sinalizam em diferentes fóruns que as práticas do atual governo e seu Ministério do Meio Ambiente são totalmente contrárias à proteção do ambiente natural. Deste lado, o Brasil real tem fome e sofre as consequências da política ambiental; enquanto que, do outro lado, há o discurso que destaca o papel de vanguarda em nos precipitar ao abismo.

*Alexandre Nicoletti Hedlund, advogado, doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFPR), é professor do curso de Direito e do Mestrado e Doutorado em Gestão Ambiental da Universidade Positivo (UP).


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