*José Pio Martins
O desejo de ser livre e o desejo de viver em sociedade são duas vontades e dois objetivos inerentes à condição humana, em qualquer lugar do mundo e em qualquer cultura. Quando indivualmente ou em grupo o homem aceita abrir mão de sua liberdade, seja para perdê-la parcialmente ou totalmente, em geral o faz em obediência a uma força capaz de obrigá-lo ou por ser um meio de garantir sua sobrevivência. Dessa premissa, mas não só dela, deriva o poder.
Qual a definição de poder? Em essência, poder é a capacidade de decidir, impor e determinar as ações de outrem, com o direito ou a força para punir em caso de desobediência. No Estado de Direito, o poder deriva da lei. Na Ditadura, o poder deriva da força armada. Mas não é só isso. Alguém somente tem poder se dispuser dos meios de ação que o torne efetivo, isto é, que seja obedecido. As fontes do poder são várias, mas há três que se destacam.
A primeira, não necessariamente por ordem de importância, é o “poder das ideias”. A ideia é uma formulação composta dos elementos conceituais e descritivos de uma ação real, seja um ato físico (como produzir um bem ou serviço, ou castigar alguém) ou um comportamental (como o jeito de se portar em um ambiente, votar em alguém). Uma vez que a ideia formulada seja explicada, ela tem o poder de convencer se for dotada dos componentes capazes de convencer o ser humano.
Nesse sentido, o “poder das ideias” é um poder intelectual. Quase tudo o que acontece no mundo, uma guerra ou revolução, nasce primeiro no intelecto de uma pessoa ou de um grupo. A revolução soviética de 1917, por exemplo, não foi obra de operários, como queria Marx; foi uma revolução de intelectuais. Lenin, Stálin, Trotsky, só para citar os mais proeminentes, nunca foram operários. Eram intelectuais marxistas e revolucionários bolcheviques.
A segunda fonte do poder é o “dinheiro”. Em uma economia de mercado, aquele que contrata alguém para fazer algo consegue seu intento porque paga. Ou seja, um empresário ou o comprador de qualquer coisa leva o outro a produzir um bem ou serviço mediante remuneração. É um poder econômico, que responde pela maior parte de tudo o que é fabricado no mundo. O próprio Estado e o governo exercem em esse poder em larga escala. Eu não executo tal ou qual serviço porque sou obrigado. Executo porque meu patrão ou meu cliente assim o quer, e é de meu interesse atendê-lo.
A terceira fonte é o “poder de intimidar”. Ou seja, o poder das armas, da força. É o caso da força policial. Lembro a história de Cassius Clay (1942-2016), o grande pugilista norte-americano, o melhor do boxe em todos os tempos. Ele fora convocado pelo exército para lutar na Guerra do Vietnã, recusou-se a ir para a guerra e, em junho de 1967, foi condenado a cinco anos de prisão e perdeu todos seus títulos. Quantos jovens somente foram à guerra para não ir à prisão?
Os liberais em economia e em política defendem que é possível alcançar os dois objetivos, portanto, é possível ser livre e viver em sociedade, e mais: a ordem liberal é a organização social mais adequada para cumprir quatro objetivos principais: o respeito à condição humana; o desenvolvimento das potencialidades individuais; a prosperidade material; e a justiça social. Liberdade é a ausência de coerção de indivíduos sobre indivíduos.
O poder das ideias (um poder intelectual) e o poder do dinheiro (transações livres no mercado) não são fontes coercitivas, pois não podem obrigar a quem não queira agir conforme o que se lhe ordena. A coerção existe quando os indivíduos são levados, sob algum tipo de pressão, a colocar-se a serviço de interesses alheios e, portanto, em detrimento dos seus propósitos e interesses pessoais, como bem lembrou o grande Friedrich Hayek (1899-1992), aduzindo: “A coerção é má porque anula o indivíduo como ser que pensa, avalia e decide, já que o transforma em mero instrumento dos interesses e fins de outrem”.
Esse tema me surgiu lendo as polêmicas envolvendo Brasil e China no episódio da importação de insumos para as vacinas contra o coronavírus. A China é um país comunista, um regime político ditatorial, com informação e opinião controladas pelo Estado e, embora com enclaves capitalistas e determinadas zonas de liberdade, está longe de ser uma democracia e uma economia de mercado. Mas o Brasil resolveu que isso é o direito de autodeterminação da China e estabeleceu amplas relações comerciais com aquele país, como se pode ver pela expansão do comércio bilateral entre os dois países nos últimos 40 anos.
A política comercial da China atual tem origem em 1979, ano em que Deng Xiaoping (1904-1997) tornou-se o líder supremo do país. Disposto a fazer reformas liberalizantes e determinado a promover o crescimento econômico a taxas elevadas, Deng Xiaoping assustou seu próprio povo com abertura comercial exterior e reformas econômicas internas. Quando indagado sobre o que pretendia, ele respondia com uma só frase: enriquecer o país rapidamente.
Na prática, era um plano para reduzir a imensa pobreza chinesa, que aliás persiste até hoje para amplas faixas da população (a população chinesa anda perto de 1,4 bilhão, equivalente a 6,5 vezes a população brasileira). Questionado se as reformas inspiradas pelo capitalismo não agrediam o ideário político comunista, Xiaoping respondeu: “Não importa a cor do gato, desde que ele agarre o rato”. Então, a China escolheu um caminho e persiste nele até hoje.
O problema do Brasil é esse vai-e-vem sobre a política externa, conforme o governante de plantão, e essa mania de qualquer político iletrado, sobretudo no poder federal, se achar no direito de usar os holofotes para dar palpite e criticar – ou elogiar – governos estrangeiros, sem se dar conta que, na diplomacia internacional, qualquer frase mal colocada cria um monte de problemas e melindres. Voltarei ao assunto, mas fico me indagando quantos de nossos políticos, sobretudo no parlamento federal, têm conhecimento sobre ciência política e o esquema do poder internacional, suficiente para serem autoridade no que falam.
José Pio Martins, economista, reitor da Universidade Positivo.